Confiro o número da casa e o alívio trata de apagar o amargor dos
quilômetros que ganhei na sola de minha bota. Morrem as hipérboles na
memória e, olhando agora, pouco me incomodam essas três horas sob o
vento gelado. Dou as costas para a casa rendendo-me ao desejo
incontrolável de fumar enquanto analiso despretensioso a calçada do lado
de lá; um morador de rua se encolhe trêmulo buscando abrigar-se do
frio, enrolado a uma manta suja. Meu peito ofegante responde com suor
gelado, sob o tecido, ao vento úmido que chegara sem aviso.
"Frio
e solidão, meu chapa. É o que tem pro jantar essa noite." Digo sentindo
um misto de pena e de identificação, como se ele pudesse me ouvir. Pena
e identificação? Auto-piedade. Resta então, apenas asco dessa sensação
deprimente.
Os curitibanos foram castigados por um calor incomum
durante o dia e, agora, no dobrar da primeira hora da manhã, o frio
impõe suas vestes. Eu, com o busto arfante de toda a caminhada, sofro
com esses panos de inverno.
O tabaco queima e meu coração
finalmente retoma o ritmo comum de trabalho. Prendo o cigarro por entre
os lábios, apoio minhas mãos por sobre o muro baixo, jogo minhas pernas
pra o outro lado e, sem notar onde exatamente faria meu pouso
atrapalhado, acabo acomodando os saltos de minha bota por sobre as
tulipas de Gregório. Um certo remorso me toma, do tipo que
provavelmente se sente ao ouvir o alarme do banco disparar antes de
conseguir abrir o cofre.
"Ele vai querer me matar..."
Cruzo
o restante do Jardim divagando comigo mesmo sobre a peculiaridade de um
homem como Gregório ter como hobbie a jardinagem. E ainda mais
peculiar, definitivamente estúpido, é o fato dele manter costumes como
este: Ajoelho-me em frente ao carpete, já diante da porta dos fundos, e
puxo debaixo do mesmo a chave que me dá acesso a sua pequena moradia.
Nota-se,
logo de primeira vista, que a casa é bem antiga. Os arcos na varanda da
entrada, os muros baixos, o portão de aço enferrujado com detalhes
talhados, toda ela é composta por uma arquitetura de outro tempo, sem a
pretensão comum atual de fazer-se ilha. Cercar-se de arames e muros em
prol de qualquer falsa segurança que acalma as almas temerosas do século
XXI.
A porta dos fundos coloca-me sob a luz da cozinha que
Gregório deixa acesa para simular sua presença a qualquer um que não o
conheça minimamente. Há um cheiro forte de charutos e cigarros pela
casa. Latas de cerveja descansam por sobre o piso carpetado, cheio de
manchas, que se estende da cozinha até a sala, acomodações estas
divididas apenas pelos restos de uma parede derrubada.
O
relógio na parede da cozinha me diz que fazem mais de dezoito horas que
não me alimento, e a fome, já a roer-me as vísceras, intensifica seus
protestos. Na geladeira: Ovos, restos de um marmitex de sabe-se lá
quando, várias latas de Brahma e, por sorte, um pacote de lasanha
congelada que faz minha noite.
Na sala, algo me chama
atenção entre os sofás rasgados e a poltrona velha. Será? Não pode ser.
Lá está, encostada ao suporte, um item inusitado cujos olhos não deito
há anos. Seria mesmo ela? Aproximo-me do instrumento inteiramente
surpreso. Ela está surradinha; o braço bem empenado e a madeira cheia de
marcas de colisões desastrosas. Passo os dedos para tirar a poeira e a
certeza se faz:
"Não acredito." É a velha Les Paul de Gregório!
Eu
me lembro dos velhos churrascos na casa do Mike, onde Greg ligava essa
belezinha e tocava aquele clássico Flamenco que ele adorava. Como se
chamava? Busco pelo nome do compositor, pois algo me dá certeza de que
não lembrarei do nome da música. A melodia vaga pela minha memória.
Mantenho-me ferrenho no encalço do enigma, que parece fazer piada de
meus esforços ao permanecer sob a sombra que o oculta. Incumbido pelo
pior tipo de mistério - aquele que constrói-se debaixo de seu nariz,
coberto pela camuflagem de nossa própria falta de tato e percepção -
cruzo os cômodos da casa sem uma finalidade clara e, se não fosse pela
preguiça que desanimou-me e desarmou o orgulho ferido que tinha-me como
um títere em mãos, eu teria revirado toda a coleção de discos do
Gregório até encontrar o maldito nome do compositor.
Cansado, chego ao quarto de Gregório.
Cortinas
azuis, paredes vermelhas, uma cama grande e completamente desarrumada,
mais latas de cerveja vazias e um cheiro fortíssimo de sexo. A vontade
de me estirar em sua cama acaba aí. Há também um criado-mudo ao lado de
sua cama contendo um maço de papeis, uma garrafa de whiskey pela metade e
uma caixa de madeira. Um sorriso ganha-me as faces e acomoda-se por
entre as maçãs de meu rosto involuntariamente.
"Era tudo o que eu precisava."
Pego
a caixa e a garrafa, acomodo-as sobre a mesa de centro da sala. Sinto
meus músculos relaxarem ao me esticar sobre a poltrona. A caixa de
madeira guarda - como sempre - alguns charutos que não abro mão.
Acendo-o sobre a chama do isqueiro. Mais um sorriso me estranha a face
com o prazer nostálgico. "Use fósforos pra acender meus charutos se não
quiser acabar com eles enfiados na bunda." Repito em voz baixa, comigo
mesmo, a frase que Gregório dizia quando, desatento, acendia o charuto
que me concedia, com o costume mecânico de acender cigarros.
Agressivo,
pervertido, desleixado, mas ainda assim, um sujeito extremamente
sensato. Para mim e para os rapazes da antiga, ele sempre foi um sujeito
sábio. Apesar de tudo, e mesmo com os anos que nossa amizade carrega,
ainda guardo-o dessa forma na memória; um sujeito sábio, com certeza!
Apesar de tudo.
O sono me toma de leve. Afundo-me na poltrona de
couro e tomo a última dose que a garrafa pode me oferecer. A sala
permite que as luzes da rua deitem-se por sobre o seu piso e a luz da
cozinha pisca por algumas vezes até se apagar. Meu corpo já está
dormente, meus sentidos comprometidos; espero que o álcool me
proporcione o sono que preciso.
* * *
Acordo
de um sono sem sonhos com um grito. Um grito familiar que reconheço ser
apenas uma recordação antiga a pregar-me outra peça com ajuda de
Morfeu. Culpa e saudade, apenas.
Quanto tempo dormi? Meus
sentidos me dizem que não mais do que alguns minutos, entretanto, estou
sóbrio novamente. O relógio da cozinha mais uma vez me traz à realidade
das rotinas, algo que já não estou mais familiarizado, e revela o
verdadeiro número de horas que estive entregue ao subconsciente. Duas
horas de sono ininterruptas, algo incomum pra mim. O ponteiro dos
minutos mal se move quando ouço, finalmente, o barulho do portão. Acendo
outro charuto e observo Gregório abrir a porta da frente, entrar,
trancá-la novamente. A certeza de que ele ainda não me viu, sob a
penumbra, proporciona-me o tipo de prazer que se tem um jogador amador
de xadrez, ao ver seu oponente, exímio na arte que lhe falta, fazer um
movimento que lhe renderá a vitória.
"Se você comeu a minha
lasanha congelada, está encrencado, rapaz." Agora imagine minha decepção
ao ouvi-lo desmantelar minha certeza.
"Por onde tem andado, seu miserável?" Pergunto ao vê-lo cruzar a sala, pegar uma cerveja e se sentar no sofá a minha frente.
"Porra!
Pelas redondezas, fazendo pequenos trabalhos de jardinagem, ganhando o
suficiente pra me alimentar, pagar as contas da casa, e sustentar as
prostitutas."
Sorrio. Como eu disse, um pervertido.
"E você, Richard? Não nos vemos há anos."
"Eu tenho estado por aí. 'Em toda parte e em lugar nenhum.'"
Ele ri com sua voz grave e rouca, levanta a lata de cerveja e repete nosso velho lema sob um interpretação eloquente!
"'Em toda parte e em lugar nenhum!'" Sua risada e voz preenchem todo o local."Que tempo eram aqueles!"
Termina
a lata em um último gole, amassa e lança-a para qualquer canto da sala.
Sua expressão torna-se grave ao se levantar e dar-me as costas em
direção à cozinha.
"Que merda de cicatrizes são essas nos seus pulsos?"
"Eu não tentei me matar, se é o que pensa..."
"Eu reconheço cicatrizes de algemas, meu velho. É daquela noite?"
"Infelizmente, mais uma lembrança."
"A polícia te deu uma surra e te deixou livre? Não entendo." Perguntou confuso abrindo a geladeira.
"Quem me dera tivesse sido a polícia."
Por trás da porta da geladeira, abrindo mais um lata de cerveja:
"Eu
já sei sobre seu reencontro com Samuel..." Um silêncio se fez. "Eu
passei trinta minutos no telefone com ele me dizendo que eu era cúmplice
de tudo, que te defender era manchar minhas mãos com o sangue dele, e
mais um monte de merdas!"
"Você sabe que eu sempre achei isso
besteira! Eu conheci aquele merda do Thomas! Aliás, hoje acho que todos
conhecem. Eu sempre estive do seu lado, cara! Pelo que você fez por mim!
Agora me diga, Richard, como diabos você quer que eu acredite na sua
inocência depois de hoje?"
Apago o charuto no cinzeiro e encaro-o nos olhos.
"Eu não quero."
A decepção estampa-se no rosto de meu velho amigo.
"Eu vim cobrar um favor."
Gregório entra no corredor e volta de seu quarto com o monte de folhas que vi sobre seu criado-mudo.
"Eu sei." E diz jogando-as sobre meu colo. Um manual antigo de sua Panhead 1969.
"Tá
na garagem. Passei muito tempo trabalhando nela pra que ela pudesse
voltar pra estrada. Tive que importar algumas peças também. Ela tá
pronta. Pega a grana que deixei na cozinha junto com as chaves e dê o
fora. A policia já deve estar chegando." Diz entrando no banheiro.
Pego o dinheiro, mil reais, mais as chaves da motocicleta.
"Ei! Richard!" Ele grita lá de dentro. "Estamos quites. Faça-me o favor de nunca mais voltar."